segunda-feira, 14 de março de 2011

Alef א

Alef, funcionário público desde sempre, acorda para mais um dia de existência. Feliz, ele começa o dia experimentando algo que ouviu num desses sonhos que mais parecem um filme francês. A voz dizia para que ele buscasse, durante a semana, olhar fixamente e pelo tempo que conseguir, no fundo dos olhos de toda mulher que cruzar-lhe o caminho. Não importa a idade (claro, acima da maioridade), cor, estética, ética, profissão, condição social ou política. O exercício era de olhar, e se deter no olhar.

A vida de funcionário público possui suas descobertas particulares. Uma delas é a percepção que só a prática proporciona: a lógica do serviço público. Quando trabalha-se na ponta do serviço, ou somos usuários, reclama-se (e com razão) do porquê das coisas serem tão burocráticas, e não serem mais ágeis. Talvez porque a própria burocracia trabalha assim, tudo tendo que fazer 3 ou mais orçamentos para licitação de uma verba que precisa passar pela aprovação de várias instâncias, e tudo documentado em 3 vias etc. Mas Alef começou a perceber que havia algo além da burocracia. Existia algo de morosidade latente do sistema público, que servia para postergar ao indefinido as demandas de hoje (e de ontem).

Alef percebeu que uma coisa que pode ser feita hoje não deve necessariamente ser feita hoje, pois se fazê-la, amanhã poderá surgir (e é claro que surgirá) outra coisa, talvez mais trabalhosa. A lógica seria algo do tipo: "Por que fazer hoje algo que se pode fazer amanhã, e depois de amanhã?" Realizar as coisas de hoje HOJE, resolver os problemas com soluções hoje, e evitar que os problemas surjam: esse não é o escopo da lógica pública. Ah, e antes que alguém atirasse a primeira pedra, quando Alef expusesse tais ideias numa roda de amigos ou colegas, esse funcionário público já foi logo tecendo uma boa argumentação: "e não vão pensando que essa morosidade é culpa de fulano ou sicrano, mas está na alma do brasileiro, infelizmente! Basta ver o que acontece quando o caboclinho passa no concurso público: encarna com unhas e dentes todas as mazelas e posturas que outrora criticara (ou pior, que ainda expõe quando vai criticar -enquanto usuário- algum atendimento de serviço público).

O jeitinho brasileiro, a lei de Gerson, a burocracia, a corrupção, a morosidade, a lei de Murphy e a lógica (do filme) "Manderlay" (de Lars Von Trier): tudo se une no dia-a-dia do serviço público brasileiro, do Oiapoque ao Chuí, de Fernando de Noronha ao Acre.

Só mais uma coisa: Alef também percebeu que existem as coisas que podem serem feitas hoje, desde que essas coisas tragam visibilidade. Mas é claro que quanto mais se pode trabalhar na superficialidade dessa coisa, melhor. Para que fazer a coisa de fato, se só a imagem da coisa já serve para publicizá-la, e assim, ganhar visibilidade?



*א*

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